O conteúdo da ciência contábil sempre esteve conectado à camada de linguagem do Direito. Por esse motivo, o manejo do Direito, mais especificamente do Direito Tributário, sempre exigiu uma forte capacitação daqueles que o aplicam, relativamente aos princípios gerais e normas afetas à contabilidade. Tal interdisciplinaridade é ainda mais presente quanto à aplicação do imposto sobre a renda, já que esse se utiliza de métodos da ciência contábil para quantificação do imposto devido (01).
Tal matéria recebeu destacada relevância e complexidade com o advento dasLeis nº 11.638/07e11.941/09, as quais reformaram aLei nº 6.404/76com o objetivo de impulsionar o processo de convergência contábil com as normas internacionais.
Nesse sentido muito se discutiu, por exemplo, acerca da incongruência sistêmica gerada pelo parágrafo 2º doart. 177 da Lei nº 6.404/76, com redação daLei nº 11.638/07, o qual fora projetado para conferir segurança jurídica aos contribuintes, prevendo a possibilidade de segregação entre a escrita contábil e fiscal. Essa sistemática, entretanto, acabou sendo alterada pelaLei nº 11.941/09em razão dos muitos questionamentos, controvérsias e incertezas quanto aos seus efeitos.
Em razão da grande controvérsia ocasionada, acabou-se por criar o Regime Tributário de Transição e Justaposição (RTT), o qual se tornou obrigatório a partir do ano calendário de 2010 às empresas sujeitas ao lucro real. Tal regime tem por objetivo conferir praticidade e operacionalizar a denominada neutralidade fiscal, desvinculando o Direito Tributário das normas societárias e contábeis e, assim, conferindo segurança jurídica aos contribuintes.
Ocorre que após mais de 4 anos de vigência de referido regime, a Receita finalmente decidiu por regulamentar a questão, por meio daIN RFB nº 1.397 de 16 de setembro de 2013.
A regulamentação imposta, no entanto, está a ocasionar grande preocupação por parte das empresas que desde 2008 se utilizavam do padrão IFRS (conjunto de normas internacionais de contabilidade, emitidas e revisadas pelo IASB -International Accounting Standards Board- Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade) em suas demonstrações contábeis.
A primeira preocupação se dá quanto à exigência contida noart. 3º da IN RFB nº 1.397, que impõe às empresas o dever de manter uma escrituração fiscal apartada, composta de contas patrimoniais e de resultado, em partidas dobradas, considerando os métodos e critérios contábeis aplicados pela legislação tributária, vigentes em 31 de dezembro de 2007. Ou seja, a Receita Federal está impondo o dever às empresas contribuintes de manter dois sistemas contábeis distintos, um para fins societários e um segundo exclusivamente para fins tributários.
Essa exigência, totalmente descabida e desnecessária a nossa ver, acaba por onerar ainda mais o setor contábil das empresas, burocratizando nosso já complexo sistema fiscal. Isso porque, por meio de referida instrução normativa, a Receita Federal está, em certa medida, reavivando a figura do LALUC ou Livro de Apuração do Lucro Contábil, figura que havia sido trazida pelaLei nº 11.638/07, mas retirada do sistema pelaLei nº 11.941/09.
Assim é que, em razão da publicação daIN RFB nº 1.397/13, as empresas passaram a ser obrigadas a elaborar uma nova contabilidade para fins de ajustar o antigo “lucro contábil”, que com a introdução das normas contábeis internacionais passou a se denominar de lucro societário. Isso implica que as empresas deverão realizar nova demonstração contábil para atendimento ao fisco, que, por sua vez, deverá ser ajustada no LALUR. Tudo sob a alegação de se manter a denominada neutralidade fiscal.
Nunca é demais lembrar que tal procedimento torna mais oneroso e burocrático o denominado “Custo Brasil”, pois obriga as empresas a ampliarem ainda mais o já inchado departamento contábil, para o cumprimento de tais obrigações que, quando apresentadas incorretamente ou em atraso, impõe uma série de penalidades.
Referida obrigação, entretanto, é no mínimo de duvidosa legalidade, pois se buscando o sentido legislativo é imperioso lembrar que o dever de se manter escrita contábil apartada foi revogado pelaLei nº 11.941/09, que alterou oart. 177 da Lei nº 6.404/76com redação daLei nº 11.638/07.
ALei nº 11.941/09, assim, retirou o fundamento para se exigir a escrituração do antes denominado LALUC, impondo expressamente que “A companhia observará exclusivamente em livros ou registros auxiliares, sem qualquer modificação da escrituração mercantil e das demonstrações reguladas nesta Lei, as disposições da lei tributária.”
Ora, a medida que referida instrução normativa impõe a manutenção de contas patrimoniais e de resultado, composta de partidas dobradas, está obviamente ampliando o objetivo da lei, pois está a atribuir o dever de realização de escrita contábil apartada às empresas. Não se trata, portanto, de livro ou registro auxiliar conforme impõe a lei, mas sim de manutenção de escrita contábil específica para atendimento ao fisco.
Outra preocupação que referida norma ocasiona se dá pelo fato de que como não havia uma regulamentação da matéria, muitas empresas adotaram o critério IFRS como fundamento para apuração da base de cálculo de determinados eventos tributários.
Especificamente, aIN RFB nº 1.397/13traz maiores efeitos quanto à determinação de utilização da dedução dos juros sobre o capital próprio, utilizando-se como critério o patrimônio líquido das empresas apurado com base na “contabilidade fiscal”, bem como gera controvérsia quanto ao cálculo dos dividendos que passam a ser tributados quando superiores ao lucro fiscal obtido com as exclusões e adições determinadas pela aplicação do RTT. As empresas, nessas hipóteses, poderão tanto ser beneficiadas quanto prejudicadas com a nova exigência, dependo do critério anteriormente adotado por cada entidade.
O fato é que tais exigências geram inúmeras incongruências sistêmicas, pois devemos partir do pressuposto que o direito tributário se utiliza de técnicas e normas que regulamentam a matéria contábil para fins de cálculo do lucro tributável. Isso implica que não é possível se quantificar o substrato da expressão “rendas e proventos de qualquer natureza”, presente noart. 153, III, da Constituição Federal, sem a utilização de pressupostos e convenções que, vindos da ciência contábil, são incorporados pela linguagem do direito tributário.
Isso por uma simples razão, jamais a expressão “rendas e proventos de qualquer natureza” corresponderá à rigorosa e exata realidade, já que tal conceito, em decorrência do princípio da praticidade, é apurado dentro de certa periodicidade apontada pela legislação tributária. Daí ser imprescindível que o lucro tributável seja calculado valendo-se de convenções contábeis e fiscais de forma a aproximar o valor apurado, o máximo possível, do conceito ideal de renda dentro do período de apuração.
As exigências impostas pelaIN RFB nº 1.397/13, portanto, são um enorme retrocesso imposto ao país. A Receita Federal do Brasil, mais uma vez exorbitando de seu campo de atuação, perde a oportunidade de caminhar no sentido de adaptar e aproximar a legislação fiscal às exigências contábeis internacionalmente impostas e, assim, diminuindo as dificuldades estruturais, burocráticas e econômicas que tanto dificultam o desenvolvimento nacional.
Trata-se a publicação daIN RFB nº 1.397/13de típica norma que causa grande retrocesso, encarecendo o investimento, dificultando o desenvolvimento e acabando por incentivar a sonegação de impostos, evasão de divisas e a informalidade.
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Notas
(01) Carvalho, Barros. Direito Tributário. Linguagem e Método. São Paulo: Noeses, 2008, p. 591.
Thiago Strapasson
Bacharel em Ciências Contábeis e pós-graduado pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET); professor de pós-graduação da Universidade Estadual de Londrina (FAUEL), do IPEBJ e dos cursos de graduação da Faculdade REGES de Ribeirão Preto; advogado associado de Brasil Salomão e Matthes Advocacia, com atuação nas áreas de Direito Tributário e Cooperativista.
Fonte: Artigo Fiscosoft